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Transição

Ônibus cheio, trocentas sacolas em minhas mãos e ninguém percebeu. Nenhuma poltrona vazia. Segui equilibrando-me entre solavancos, mãos ocupadas e olhos desinteressados. Diferente de quatro anos atrás, quando entrar num coletivo já era uma grande novidade. Naquele tempo, sentaria. E várias mãos se estenderiam solícitas.
Um dó de mim mesma fez com que encolhesse um pouco mais. Tanto que a coluna sentiu. Ao mesmo tempo, algo quente foi crescendo nas entranhas. Raiva. Ainda indiscriminada, mas raiva. Bendita, sagrada raiva. Era tudo que precisava para sair do estado letárgico em que me escondera.
A realidade ainda era brumas difíceis de serem rompidas. Escuridão sem pontos de trajetória. Voltei-me para o virtual. Numa peregrinação sem objetivos, fui em busca da antiga habilidade com as palavras. Vi-me ainda afiada. Talvez um pouco lenta nos dedos e no raciocínio. Mas as brechas abertas mostravam que não se enferrujara o fio da navalha.
Uma necessidade urgente impôs-se acima dos conceitos lineares. Olhei-me ao espelho. Uma antiga imagem sobrepôs-se à da madona de cedro de sorriso bondoso. O lado perverso gritou em voz sufocada. Dois grandes personagens da antiga vida mostraram-me a língua. Sarcásticos e abusados. Descobri que os queria. Necessitava tê-los novamente fazendo parte deste novo processo. Deles tiraria sangue. Novo e vermelho.
Começou a transição. O caminho é longo - nevoeiro, pedras e espinhos. Mas, ainda frágil, minha luz já se acende. O resto é apenas uma questão de determinação. A maçã estará sempre lá. Mordê-la é o objetivo primeiro.
Estou boca, língua e dentes!


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