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Proseando

Ontem, eram mais de onze horas quando uma antiga amiga me ligou. Chorosa. Indignada. Culpada. Acabara de descobrir que sua filha de 14 anos está grávida. Um fato que, apesar de desestruturante em qualquer família, vem se tornando comum, infelizmente. Depois, já na cama, foi inevitável pensar em nós – eu e esta minha amiga – e em como vivemos a nossa adolescência.
Era um tempo em que a droga mais usada pelo brasileiro – de todas as idades – era a obediência. Era um povo na sua maioria calado. Porque “cala a boca” era expressão usada por pais, professores, maridos e militares - além do temível AI-5 pairando sobre a cabeça de todos nós. E a maioria calava sem sequer saber porque o fazia. Mas nós, uma boa parte dos jovens e adolescentes - sob a influência especialmente dos movimentos de protesto de jovens do mundo inteiro, da contracultura trazida pelo rock’n roll, MPB e o teatro de arena, através das leituras de Marcuse, Marx e outros - criamos outras expressões, tivemos outro comportamento. Desobedecer, questionar, transgredir e que tudo o mais vá pro inferno – este era nosso lema. (Algum tempo depois, descobri que Maiakóviski já dizia isso num poema: “Gente é pra brilhar / Que tudo mais vá pro inferno / Este é o meu slogan / E o do sol”)
Foi o tempo também das pílulas. Do LSD ao anticoncepcional. E não era difícil ter acesso a nenhuma delas, especialmente esta última. Mas apesar da liberação sexual das décadas de 60 e 70 e toda a nossa loucura em função de nossas ideologias, o índice de gravidez na adolescência foi proporcionalmente muito menor do que vemos hoje. Longe de mim querer ser uma especialista em comportamento familiar, mas tentando fazer um paralelo entre nós e os atuais adolescentes, fico pensando que a grande deficiência hoje está num vácuo inominado existente entre pais e filhos. Vácuo estabelecido, conscientemente ou não, por nós - aqueles adolescentes moderníssimos, questionadores, transgressores e engajados. Os mesmos que tiveram pais considerados retrógrados, repressores, castradores. Mas foi com estes pais que aprendemos os valores que nos sustentaram, até para que pudéssemos estar estabelecendo uma nova ordem. Porque para se mudar algo é preciso partir de algum ponto. E fico me perguntando: de que ponto partem hoje os adolescentes?
Parece que em alguma parte do caminho nós, os adolescentes daquele tempo, nos perdemos. A maioria de nós continua sendo cabeça pensante, engajada e indignada (embora questionável em relação à ação).
Mas e como pais? Destruímos o modelo e não soubemos colocar outro no lugar?


* * *



Convite para blogagem coletiva

Copiando direto do Jus Indignatus, blog do Ricardo Rayol:

Como todos sabem no Brasil o povo tem memória curta. Dizem os políticos, envolvidos em escândalos, que se deve fazer o possível para ser esquecido no 16º dia. Então, no dia 02 de agosto, convido a todos para a blogagem coletiva "Vôo JJ 3054 - Uma cena". A idéia é tomar uma cena que mais tenha marcado, na cobertura do acidente e de fatos relacionados, e falar sobre ela.
Participe!

Ótima semana. E beijos meus!



Midi: Cálice - Chico Buarque/Milton Nascimento

Encontro consigo mesma

(carta para minha mana Elis
e a quem mais interessar)

O dia é claro como tantos outros, o mundo fervilha ao seu redor e você o sente apenas superficialmente. Há dias você está desacordada e nem sequer tem a aliviante pretensão de ser a bela adormecida. Porque você sabe, não há príncipe encantado que vá te acordar. No fundo, bem lá no fundo, você sabe mais: o passarinho que fará sua manhã está preso dentro desta sua pouca vontade de ver e de ouvir e de estar e de ser.
Onde foi que você se perdeu?
Não, você não se perdeu. Você está, profundamente, esquecida de si mesma. Como se guardada em esquecimentos conseguisse anular os passos inexoráveis desta vida que está passando por você. Esta mesma vida que em outras épocas foi sua amiga íntima. Mas você sabe que a vida não é uma amiga que ama incondicionalmente. O amor da vida é um amor exigente. Ele cobra cada minuto desperdiçado, cada dia mal vivido. E seus dias, seus minutos estão sendo desperdiçados nesta falta de coragem de ver-se e querer-se e aceitar-se. Mas não há como mudar sem aceitar suas próprias limitações. Sem ser tolerante consigo mesma. Sem o grito que estilhaça o reflexo do espelho. E sem entender que no ato de perder você ganha a possibilidade de ganhar. Sem perdas não há ganhos que possam ser valorizados.
Por isso, é preciso rasgar a pele. Despir a alma. Expor-se a si mesma e promover seu próprio encontro. Coragem. Abra a concha onde se esqueceu e comece a fazer novas escolhas. Mas sem atropelos. Lembre-se de Kafka: "Tenhamos paciência - uma longa, interminável paciência - e tudo nos será dado por acréscimo." E nunca se esqueça de que a vida só se justifica quando você faz da sua caminhada um eterno garimpo do amor.
Siga em frente. Amando-se. Amando. Sempre e profundamente.



* * *



PS.
lu, adoro você aqui!!!


midi: tocando em frente - almir sater

Pedaços de mim

I
Calma! Não fui vítima de Jack estripador nem estou tão ruim a ponto de estar em busca dos meus pedaços. Verdade que ando profundamente preguiçosa. Tanto que ando sumida dos blogs. Mas de resto, estou apenas escorregando em cascas que eu mesma coloco e com uma certa dificuldade para acender luzes no meu caminho. Podia ser pior. Já pensou se eu estivesse contando apenas com a luz no fim do túnel?

II
O texto Absolvi os chats deu o que falar. Recebi alguns e-mails de amigos que por pouco não me chamaram de retrógrada. Tudo bem. Admito que sou exigente e chata quando se trata de linguagem escrita. Mas convenhamos: passei a vida lidando com educação, seria inconcebivel não dar valor à escreita correta.
Nem por isso, sou intransigente. Não uso a norma culta o tempo todo nem deixo de dar valor à linguagem coloquial. Só não consigo deixar de me preocupar com o sumiço das vogais. Coitadinhas! Que mal elas nos fazem para serem excluídas do nosso convívio, hein?

III
E por falar em linguagens...
Fui eleita “o chefe” mais metido que meus caminhoneiros já tiveram. Motivo: uso algumas palavras que ninguém conhece. Em contrapartida, me absolveram: fui eleita a musa deles. Não sei direito porquê, mas com certeza não é prêmio consolação – ou eu mato um!
Resultado: estou aprendendo a falar pequenos palavrões e a cultivar algumas expressões bem pitorescas. E o mais importante: estou montando uma biblioteca na ante-sala do refeitório. Por enquanto, um ou outro se aventura a pegar um gibi. Nenhum livro saiu do lugar. Mas tenho certeza que chegará a vez deles. Especialmente se eu continuar sendo musa de caminhoneiros.

IV
Fim.


Grande beijo pra você.
Se beber, não dirija. Se dirigir, não beba. E principalmente, não confie no pacote de novas medidas que regulamentam a aviação civil.




Midi: Continue curtindo Lady Day – já que mais nada de interessante acontece neste castelo de Abrantes (tentativa infame de fazer trocadilho!!!)

passagem

o plano inclinado
onde derrapou nossa vida
jogou-nos cansados
indigentes
e separados
no abismo da estranheza

de tudo que vivemos
ficou este silêncio
que passeia
ingente
por paisagens
que os anos não adoçaram

mas há sempre
novos dias:
já escuto a algazarra
de passarinhos
balançando a alegria

de inclinado
só restará o galho
na memória das sementes

de silêncio
apenas o intervalo
entre bemóis e sustenidos


* * *

Uma ótima semana e todos meus beijos



PS. Desculpem o meu sumiço. Tem um bichinho estranho me puxando pra baixo e tá dificil vencê-lo. Mas estou tentando reencontrar o caminho. Me aguardem!
Obrigada a todos pela presença, pelo carinho, pela atenção.

midi: solitude - billie holiday

Absolvi os chats!

Meu conceito sobre chats sempre foi o pior possível. Mas... há um tempo atrás, quando estava em busca do meu renascimento, andei entrando em salas de bate-papo. Depois de alguns dias perambulando por elas, cheguei a três conclusões: eu estava me punindo severamente, a idade da pedra está mais perto que imaginei, Chat é um grande espelho onde a gente se vê como quer.
Comecemos pela minha autopunição. Rodopiei de saia justa e saia rodada por todo tipo de chat. De papo-cabeça a dog. Após cada sessão de besteiras – em algumas, pseudo análises de Nietzsche, Platão e trocentos outros filósofos, em outras convite direto para transar com um bicho qualquer, passando por ordens sádicas como se fosse eu uma maso em busca do sofrimento que redime - eu me perguntava: quais foram os ganhos e perdas da noite? Nunca consegui encontrar respostas. Daí a conclusão: era mesmo uma forma de me punir por algo que só a minha mente insana sabia.
Mas da tal punição, apreendi alguma coisa. A maior parte dos freqüentadores de chat, na sua maioria pessoas de bom poder aquisitivo e escolaridade acima da média, está emocionalmente empobrecida, politicamente andrajosa e vogalmente miserável. Esta última merece um parágrafo especial.
Cristo, as vogais estão sumindo do nosso idioma! Não bastasse o nível baixíssimo das opiniões – isso quando se consegue emitir alguma opinião – ainda usam consoantes que suprimem as vogais. Às vezes eu tinha uma dúvida atroz: estou entre adolescentes ou voltei ao mundo das cavernas? Hora me sentia cercada de hormônios desvairados, hora chegava a sentir a dor de ser puxada pelos cabelos. Mas esta resposta também não era importante. Nada parecia ser mais importante que estar ali assassinando o idioma em busca de uma companhia. Inclusive eu – ainda que o vício me fizesse escrever todas as palavras por inteiro e eu me achasse diferente de todos. E todos nós, perdendo as vogais irremediavelmente!
Obviamente, em pouco tempo paguei meus pecados e me alcei ao paraíso – fora dali. Acha que não ganhei nada com isso? Engana-se. Não há experiência que não traga ganhos. Um dos meus grandes ganhos foi encontrar três pessoas maravilhosas que são grandes amigos. Outra e talvez a mais interessante para aquele momento: se o meu ego já era avantajado, tornou-se um monstro em altura, largura e intensidade. Sem nenhum medo de parecer vaidosíssima: sou a deusa dos chats! Além disso, ganhei a certeza de que aquela gente lá não é a escória da humanidade. São pessoas mais que comuns e que no dia-a-dia trabalham, sorriem, amam, odeiam, comem, etc. Exatamente como eu, como você.
Chat não é nem inferno nem paraíso. É apenas o espaço onde as máscaras caem e o ser humano se mostra por inteiro – usando o anonimato ou através das imagens que cria para si mesmo. Quando se consegue analisá-los de fora, como fiz, chega-se à conclusão que é uma terapia de choque. E que choque!






Um grande beijo e ótimos dias!




Midi: Bee Gees - I started a joke


stand by

Não sei se é coisa de pisciana ou se de mim mesma: sei que tenho a pretensão de descobrir tudo que me interessa muito. E quase sempre chego onde quero. Mesmo que ao custo de alguns escorregões, algumas perdas e uma paciência de jó.
Tanto rodeio pra dizer: a página esteve fora do ar e está em stand by porque estive em busca de descobrir como se coloca haloscan no blogger novo!!!! É bem verdade que quase perdi - de novo - este blog. Mas não se alcança metas e objetivos sem correr riscos. Então taí o sistema de comentários que gosto. E estou inteiramente à disposição pra socializar esta minha grande descoberta. Quer as dicas? Me mande e-mail.
Mas agora estou com pressa e pressa é inimiga da inspiração. Volto depois pra deixar algo que mereça a sua leitura.


Beijos muitos e até!!!

Vida

Ontem meu coração parou. Por palavras-convite ao pecado da luxúria. Havia dois caminhos para voltar à vida, eu sabia. Um deles consagraria o meu espírito. O outro sangraria a minha carne. Quando o coração voltou a bater não havia mais escolha: eu já me transformara inteira no pecado da gula. Pecar é preciso, Viver é impreciso.


* * *

Continuo abusando e lambuzando beijos... em quem quiser!



PS. Existem poetas que fazem do poema um ponto de exclamação. Depois somem em reticências. Não é justo isso!!!


midi: momento - pedro abrunhosa

Poetando

negação


quando
concreto
teu sujeito-deus
vibra desafio
a fome
de tal coisa
lambe
minha boca

mordo o sonho
cuspo o veneno

e os lábios
todos eles
fecham-se
ao profano

divina
molho-me
sozinha


Participando:


More:

Se este sujeito-deus
Não quebra tua resistência
Caia nos meus braços:
Dois pra lá, dois pra cá
E todos os teus lábios
Se abrirão sorridentes

Rafaela Silva Santos:

"Quero e não quero
Nego-me a ver
Que é tola essa insistência
Dessa concreta existência
De te querer com prazer."

Simone Oliveira:

E desse lamber
escorre o hálito
esconde-se o gozo
outro outono
não sou mais nada
sou tudo.

Naeno:

Por todas as ruas, onde ando sozinho
Eu ando sozinho, com você.
E você que nem se lembra mais.
Se lembra!
Do jeito que eu fui,
Tão dedicado, meu amor.
Lembro com saudades
A rua a cerca, o espinho, a flor
Tantos gestos fis pra lhe falar,
Lhe ver sorrir.
Você se lembra.

Ainda ando sozinho,
Eu já nem sei se ando,
Eu ando sonhando com você.
E você que nem se lembra mais,
Se lembra...
Do jeito que eu sou
Tão complicado,meu amor
Fico encabulado
Quando vou pegar uma flor
E há tantos gestos mais
Pra lhe falar e esta canção
Pra você lembrar.



* * *

Semana linda pra você! E beijos meus!







wonderful world

Hoje quero ser chata. Ou talvez apenas caminhar na contramão do orgulho humano. Estou falando da eleição das sete maravilhas do mundo. Para começar, devo dizer: nada contra os monumentos escolhidos. A beleza, a ousadia e a engenhosidade que os envolvem são admiráveis. E sou tão sensível a elas quanto qualquer ser humano. Contudo, são apenas demonstração da inteligência humana. E a inteligência, por si só, não garante a qualidade de vida no nosso planeta.
Portanto, a meu ver seria muito mais interessante que se fizesse uma eleição das maravilhas naturais, estas que gritam pela preservação. Ou, seguindo a idéia da criação do homem, as maravilhas da sabedoria humana. Seria uma forma de resgatar valores e re-valorizar legados imortais. Legados estes que permanecem entre nós, não como grandiosidades, mas como luzes que podem e devem acender as nossas próprias.
Posso pensar em vários destes legados, de maior ou menor importância, e deixo o convite: vamos relembrar o que a inteligência, aliada à sabedoria humana, nos deixou? Começo, você continua:

- a desobediência civil proposta por Mahatma Gandhi – revolução pacífica pela igualdade e fraternidade que inspirou grandes líderes como Martin Luther King e Nelson Mandela.
- o livro – uma das mais revolucionárias criações humanas, responsável pela disseminação do conhecimento, pela preservação da cultura, da história, das ciências, das artes e da literatura.

e uma escolha muito pessoal:
- a pílula anticoncepcional - pelo que representou na minha liberação sexual e, conseqüentemente, na revolução que provoquei na minha cabeça e no meu entorno.

Participando:

Endmore:
O mais belo e mais perfeito monumento de todos os tempos: a mulher.

Dora:
Eu dou meu voto para a Penicilina...E para Alexander Fleming! Que aliás, já foi detentor do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Ele é um "monumento". E sua descoberta, a Penicilina, quantas vidas salvou??? Vc já teve alguma infecção? Quem não teve? Já pensou se não existisse a penicilina (o primeiro antibiótico)?

Jota Effe Esse:
Eu daria o meu voto para o patriotismo/humanismo do marehal Rondon. Nos contatos com os índios ele dizia; morrer se preciso for, matar jamais.

Guto:
Penso que Copérnico, Darwin e Freud revolucionaram a sabedoria humana com a derrubada de conceitos como, respectivamente: o Teocentrismo, que acreditava ser a terra o centro do universo; a Superioridade Humana frente às outras formas de vida, com a teoria da evolução das espécies; e a primazia do inconsciente sobre a consciência na mente humana. Estas maravilhas mudaram o rumo da humanidade, penso eu.

Maria Rita Schettino:
Um “monumento” brasileiro: Paulo Freire. Revolucionou a Educação através da Pedagogia Crítica e criou a Pedagogia da Conscientização, propondo um trabalho inclusivo que privilegia as classes mais pobres, visando sua educação e a criação de uma consciência política participativa.

Luis Tomás:
Sou pela Revolução Francesa, lembrada ontem na comemoração da Queda da Bastilha em 1789, fato marcante e simbólico dentro da revolução.
Em que pesem as guerras e o terror advindo desta revolução, foi através dela que foram semeadas novas ideologias na Europa (e em conseqüência no resto do mundo), em especial os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, princípios perseguidos até hoje pelo mundo ocidental.

Claudinha:
Adorei que tenha citado a pílula, pois esta foi marco de uma geração que se descobriu dona de suas vidas, de suas escolhas.

Lela:
Há uma maravilha natural, Loba, que luto para preservar; é a beleza doce e terna do sorriso de Kauan, meu afilhado, meu dengo de 4 anos. Preservar o sorriso dele é preservar o seu direito a uma vida segura com saúde, educação, amor e um mundo menos vilipendiado.


* * *

Grande beijo e ótimos dias a todos.


Midi: What a wonderful world - Louis Armstrong

Odeio

noites discretas
político bandido
musa sem poeta
silêncio sem mito
fim sem princípio
palavra sem ação
criança com frio
esta não-inspiração

e como odeio muitas outras coisas (politicamente incorreta que sou), inclusive estas pobres rimas que quase nunca me permito, viro a página e abro o que adoro: ser indicada pela Esyath, de novo como referência.
Com meus agradecimentos pelos (exagerados) elogios, cumpro parte do que me compete: uma imagem que gosto, um poema que amo!


A imagem:



O poema:

Fruto

Nos galhos secos
da árvore morta
floresceu um ninho

Em troca de canto
alguma esperança
madura o passarinho

Poema de Wilson Guanais, publicado no livro Um poema pra Loba

(agora diz aí: cabe mais narcisismo nesta página???? o que não faz a falta de inspiração!)




POETANDO JUNTO:

Assis Freitas:


ODEIO II

Em tudo que me falta
na pressa e na calma
Odeio

Em tudo que me causa
avaria e estranheza
Odeio

Principalmente odeio
mas mesmo assim anseio:

os beijos que não dei
os carinhos que não colhi
os caminhos que não escolhi
a casa em que não morei

os versos que não escrevi

Um beijo abusado e lambuzado de vermelhos!!!!





Midi: Strange fruit - Billie Holiday

Poetando

Felicidade
(ou Uma espécie de céu)


é liberdade de precisar
ferozmente de si mesmo

é esquecer de conjugar
um pretérito imperfeito

é peito ferido de alívio
pelo cinzeiro apagado

é rasgar a página da culpa
mudando a seta na estrada

é sono não-dormido
em solidão preenchida

é levantar-se de um tombo
sem precisar lamber feridas

é coração batendo grande
na surpresa de um sorriso

é descobrir aberta a porta
de uma esperança perdida

(são momentos
que salvam a gente

e a gente nem sente)


Réplicas:

QuincasB:

o corpo só é feliz na ação

lu:

felicidade é namorar com ele
(ai que eu queria saber quem é este ele, lu)

Simone:

Felicidade é... depois de tantos e tantos meses te encontrar tb de casa nova e assim, recomeçar uma amizade que pra mim, jamais acabou.
(linda, linda!!! isso é mesmo muita felicidade)

Naeno:

Triste pássaro
Vi em teu olhar
Na hora do Adeus
Enquanto o táxi
Singra nas ruas da cidade
Eu mergulho na visão de antigos casarões
Triste andorinha
Vi em tua face
Da hora do adeus
Enquanto o táxi
Fere a noite da cidade
Busco teu riso em solitárias canções

Esta canção não diz da minha dor
Nem da medida da minha solidão
Era pra ser uma canção de amor
Ficou somente uma triste canção
Senti-me então um pássaro sem asa
Eu não sou mais um pássro voador
Enquanto o táxi deixava a nossa casa
Em direção a solidão sem cor.

Jeanete Ruaro:

Felicidade é ter a lucidez
de guardar o sonho.

ana.

Felicidade é ter o TUDO e o NADA sem noção de tempo ou espaço para definí-la.


Rafaela Silva Santos:

"Felicidade
é um estado permanente de espírito
Que se completa e compartilha
Quando encontramos alguém
Que esteja nessa mesma sintonia
Lucidez embriagante e única
Mesmo que sozinha."



Uma ex-crônica do perdão

Desde que vi, na televisão, a entrevista de Sirlei, a moça que foi covardemente agredida por um bando de universitários preconceituosos (a meu ver, xenófobos), venho tentando fazer uma crônica. Não sobre o fato em si, mas sobre perdão. Mais como uma homenagem a ela, pela sua imensa e invejável capacidade de perdoar seus agressores. Depois de várias tentativas, desisti. E agora descubro porquê.
Não sei perdoar. Eu que sempre me achei dona de uma grande capacidade de amar, não sei perdoar. E não consigo entender como é possível perdoar quando se está sofrendo as conseqüências de atos criminosos ou inconseqüentes ou egoístas. Sei que perdoar é uma atitude cristã - e sou cristã. Mas também não me esqueci da Lei de Talião que descobri na Bíblia, muitos anos atrás. E confesso: em casos como este, a vontade é fazer justiça com as próprias mãos.
Mas sou filha de Deus, cidadã do século XXI e espera-se que ao menos tenha um comportamento civilizado. E isso pressupõe exercer a minha cidadania sem infringir nenhuma lei. Mas não pressupõe perdoar. Ao contrário daquela moça, eu não perdoaria aqueles rapazes. Não enquanto o último resquício de dor moral não se extinguisse. Mas então não seria perdão. Seria esquecimento. Seria prescrição. Porque alguns atos são imperdoáveis. Assim como é imperdoável que tirem a venda da justiça e usem mecanismos legais para evitar a prisão de criminosos que não sejam pretos ou pobres.
Portanto, se o meu aculturamento não me permite sair por aí aplicando a lei de Talião, posso e devo me indignar. E a crônica que deveria ser de perdão, vira uma voz de indignação. Por Sirlei e por todas as vítimas da violência - seja física, moral, emocional. E que seja também um instrumento de repúdio à impunidade, esta praga que cresce em todos os níveis e se multiplica em mais violência.
E para finalizar: eu me perdôo por não saber perdoar.




***



Bons dias, boas noites, queridas e queridos leitores!

E meus agradecimentos pela presença, pelos comentários, pela amizade.


Sem Midi (hoje não consegui encontrar o dourado da minha pílula)

entrecorte

quando deixa-se
de amar
não há como insistir
:tem que se colher
os espinhos
da despedida

e ainda
de alma dormente
de quimera despida
vazia
tem que se reconhecer
e se abraçar

depois
livre e lenta e nua
buscar o amanhecer
dos dias esquecidos

contando consigo


Poetando junto

Wilson Guanais:

"QUANDO DEIXA-SE DE AMAR..."
(uma releitura quase barroca)

tem que
se recolher
dos espinhos
(a carne)

ainda resta
abrir
nos olhos
a alma

buscar
o amanhecer
dos dias
esquecidos

dentro
da noite
:fora
do sonho.

Ceci:

Quando se deixa de amar,
resta colhêr aquele brilho de olhar
aquele gosto de beijo musical,
aquele calor de dedos entrelaçados,
aquele momento sem nada preciso,
aquela lua prateada na areia,
aqueles versos dançantes...
e cantar para sempre Amar!
Drummond como testemunha
Amém!

Diovvani Mendonça:

QUEM AMA CUIDA, MAS TAMBÉM LIBERTA!

Por mais difícil
que seja:
procuro
encontrar
na dor
de qualquer
despedda,
o DNA
do aprendizado,
que me conduza
à bifurcada estrada
de possibilidades
multiplas.


Tarciso:

Quando deixa-se de amar
quem sobrevém é o vazio
a solidão, o fastio
um rumor na escuridão
certa sede da ternura
que vazou do coração...

Nelson:

Quando perdi meu amor
Achei que nada poderia ser mais triste
Até ouvir Bethania
cantando "Bom dia tristeza"
acompanhada pelo som
de um trombone absurdo
que chorava calmo.

Rafaela Silva Santos:

Quando se deixa de amar....
"A vida desfolha desnudando-se
Espalhando em vários tons
Gritos surdos em sons
Das lágrimas movendo-se."



Midi: Eu não sei quem te perdeu - Pedro Abrunhosa e Sandra de Sá




Proseando

Helena, uma das faxineiras que trabalham comigo, tem um filho autista. Descobri antes mesmo que ela soubesse o que é autismo.
Dia destes, pediu-me para levá-lo para o trabalho - a vizinha não poderia tomar conta dele. Levou-o. Um garoto miúdo e sério. Parecia ter uns 4 anos. Passou toda a manhã num cantinho do corredor brincando com umas caixinhas.
Por várias vezes passei por ele. Em algumas, brinquei, fiz carinho em sua cabeça, mas ele pareceu nem me ver. E eu, de lá para cá nas minhas várias demandas, achei uma gracinha que ele não interferisse na rotina da empresa. Até que ouvi gritos estridentes vindos do corredor. Era hora do almoço e Helena estava tentando tirá-lo do seu mundinho para almoçar. A cena foi terrível. O garoto gritando, chorando e chutando. A mãe segurando seu braço com uma mão e com a outra alternando tapas e beliscões.
Minha reação foi imediata. Garanti a volta do garoto às suas caixinhas e levei Helena para minha sala. Em poucos minutos, tive a confirmação: ele era autista e ela não tinha a menor idéia do que vinha a ser isso, menos ainda de como lidar com o filho. Entre palavras cortadas por um choro cansado, contou-me um pouco de como vivia e do “castigo que era ter um filho esquisito”.
Pensei naquela mulher ganhando o salário mínimo, morando num barraco de dois cômodos com 3 filhos pequenos, sem nenhuma perspectiva de uma vida melhor. Toda minha disposição de condená-la pelo que fizera ao filho virou impotência. Como julgar, pelos meus parâmetros, alguém que apanhou da vida desde que nascera?! Como querer que ela entenda que filhos, diferentes ou não, são presentes e não castigo?! Como esperar que ela saiba que quem ama não bate, se todo o modelo que teve foi exatamente o contrário?!
Respirando fundo, disse a ela o que foi possível naquele momento. Mas eu sabia que era muito pouco. Era apenas uma tentativa de diminuir minha própria impotência.
Desde então, venho buscando parar de me preocupar com isso e me ocupar efetivamente de algo que possa mudar gradativamente esta realidade. Educação. Não há outra saída senão educar crianças e reeducar adultos. O desafio é convencer os patrões de que devem investir na reeducação de seus empregados e convencer os empregados de que mudar não dói. E pode trazer novas perspectivas para a vida de todos.
Será que estou novamente perdendo asas num sonho irrealizável?

Midi: A vida que a gente leva - Leila Pinheiro

despertar

seis da manhã
nenhum galo cantando

em gestos sempre iguais
a vida revela
a cama
a preguiça
os sentidos

e o traço cruel
da solidão:
asas voaram
nos lençóis amassados

as manchetes
acordam a consciência
e desnudam a banalização
da ferida
que dói por dentro

rebelo-me
em gestos desiguais

:apesar do inverno
colherei o dia
no desabrochar
das flores

(ainda que
amores-imperfeitos)




* * *

Uma ótima semana a todos. Muitos beijos.


Midi: I have a dream - Richard Clayderman